domingo, 31 de agosto de 2014

Bater e correr



Não sei quando acontece, mas uma hora você olha, e lá está. Ou, no caso, não está.

Você está em algum lugar, não sei qual; não sou onipresente. Mas você está nesse algum lugar. Alguma coisa está prestes acontecer e você não sabe disso. Talvez pense que aquele seja mais um dia chato e tedioso na sua vida sistemática, boba e supérflua, mas, no fundo do fundo do fundo da sua mente, você pressente uma mudança radical vindo em sua direção, como um carro distante chegando cada vez mais perto de você enquanto tenta atravessar a rodovia; você não sabe se o carro vai te acertar se não atravessar rápido o suficiente, você apenas se sente confiante que nada disso vai acontecer, mas lá está a cena do crime: o carro bate em você e você não morre. Você sente aquela coisa acontecer e, quando acontece, não há mais escapatória; o carro te atingiu de vez. E mesmo assim, nada aparente aconteceu. Você apenas sentiu. Como se pressionassem seu peito com hélio, transformando-o num balão e fazendo você flutuar por aí sem direção. É assim que começa. Com um balão flutuando.

E então, eu algum outro lugar, em outro momento, o sentimento se repete. A batida de carro se torna cada vez mais normal e rotineira, e você ama a sensação que aquele retardado te trouxe ao te atropelar. É, você ama a sensação da batida contra teu peito, do teu coração batendo forte o suficiente para estourar todas suas entranhas. Você se lembra muito bem de quando aconteceu tudo aquilo, mas não se importa porque tudo isso é fantástico. Você se sente fantástico, quer sair e gritar pra todo mundo como um imbecil, como um alucinado. Às vezes fica com vontade de sair na rua, de madrugada e dançar. Você se sente melhor do que nunca. Mas aí alguma outra coisa acontece. Ou não acontece.

O carro que bateu em você não parou para ver se você estava bem; ele te acertou e foi seguindo caminho. Nunca descobriu nem que haviam te atropelado, e você tenta se fazer de notado. Não vai ao hospital, pois suas feridas externas são a demonstração pública de como se sente. Você quer mostrá-las ao motorista daquele carro. Você contrata detetives particulares para achá-lo. Você precisa achá-lo antes que as feridas fiquem piores, antes que o sangramento seja mais intenso e mais frequente. E quando acha, o motorista não sabe quem é você; ele não se importa quem você seja. Ele nem se lembra que te atropelou. Você mostra as feridas, ele diz "nossa, que coisa feia que você tem aí, moço. Acho melhor ir prum hospital". Você não entende, acha que ele está se fingindo de imbecil. "Foi você quem me fez essas marcas", você diz, "foi você quem me atropelou na rodovia". Ele te olha com aquela cara de "não sei do que você está falando" e diz: eu não sei do que você tá falando. Ele não percebe o que fez, e não seria o primeiro.

Só que, agora, você tem feridas radicais, sangue banhando suas roupas. Não sabe o que fazer, então tenta ligar pro motorista. Ele não atende as suas chamadas e você vai se sentindo cada vez pior. Gostaria de procurar um hospital, um médico, mas já é tarde demais; você sabe que está prestes a morrer e a dor só parece aumentar de instante e instante. As horas ficam infinitas em suas finitudes, os dias passam devagar como anos e os meses se tornam cansativos e te fazem envelhecer cada vez mais. De alguma maneira, você sobreviveu a todos aqueles ferimentos. Você anda, come, respira, vive. Sempre achou que fosse morrer a qualquer instante por causa daquelas feridas tolas, mas não morreu. Você está vivo e começa a engrenar sua rotina maçante novamente enquanto arruma os trapos que viraram suas roupas e sua vida. 

Um dia, você acorda e percebe que as marcas nunca vão te deixar, então você passa a mão pelo peito e sente todas as marcas, os cortes profundos em sua carne, que deixaram quando te atropelaram. Não há dor quando você as toca. São apenas relevos fechados em seu corpo. Marcas do passado. Tenta procurar alguma informação sobre o motorista e até pensa em ligar pra dizer alguma coisa, mas você sabe que ele não vai atender e não retornará a chamada mais tarde. Quando este pensamento te atinge, também, você não se sente mal; sente que algo acabou. Sua necessidade dele se esvai junto com o número de telefone que você queimou e jogou as cinzas no lixo. Você não sente nada porque já não há mais nada para sentir. Não há mais dor. Não há mais a magia de esperar sentado algo acontecer, de ter esperança. Ninguém a matou; ela simplesmente partiu para outro lugar sem te avisar. Você sorri por dentro e por fora. Se veste para seguir a monotonia da vida, escreve uma carta, pega as chaves, sai do seu velho apartamento, prega a carta com suas chaves na porta e parte.

Não há mais nada para procurar naquele lugar vazio e, quando você repara, já aconteceu tudo novamente.