domingo, 13 de abril de 2014

À vista já tarde

Estava sentado no café tendo uma conversa interna com meus vários eus enquanto discutia bravamente com um saquinho de açúcar que não queria abrir. Sentava-me bem no meio do café, com meu assento apontado para a porta. Toda a vez que o sininho dela batia, eu levantava meus olhos e via quem entrava ou saía. Discuti mais um tempo com o açúcar que colocava em meu café, tentando deixá-lo nem tão doce e nem tão forte. Quanto terminei minha briga, na qual eu venci, comecei a criar um redemoinho na caneca com uma colher. Fazia isso enquanto mantinha meus olhos atentos à porta. Vi rapazes entrando sozinhos e saindo sozinhos. Vi algumas garotas entrando em grupo, saindo sozinhas, com antecipação. Eu olhava para todos que ousavam entrar e sentar. Que pediam alguma coisa para beber ou comer. Olhava-os todos com uma determinação forte e vulgar. Imaginava quem eram, onde iam, o que faziam para ganhar o dinheiro. Imaginava cenas de amor e esperança com aquelas pessoas. "Ei, talvez eu pudesse sair aqui e ir falar com ela. Ela parece ser legal", eu discutia comigo mesmo. "É, mas você nem conhece ela. Fora que ela está com as amigas"."Tem razão. Deixa quieto. Mas aquela ali parece formidável e se..." "Não, cara. Não". "Tá certo, tá certo..."

O tempo passa, eloquente, desvairado e atrasado por toda a trajetória dos meus pensamentos. Tomo um. Dois. Três cafés. Chego no quarto. Começo a escrever. Foco nas pessoas, em ações, em retaliações. Talvez hoje a noite alguém queira se vingar. Aquela moça de vermelho com certeza tem o coração quebrado e encharcado de álcool. A amiga dela só a trouxe aqui porque ela acordou com uma ressaca monstruosa e precisa colocar um rumo em sua vida. Aquele outro rapaz parece transtornado. Talvez alguém que ele conhece e se preocupe esteja no hospital. Uma vítima de um acidente de carro logo de madrugada. O outro motorista estava bêbado. Não. Clichê. A pessoa que ele gosta estava bêbada. É o irmão dele. Tinha acabado de passar na faculdade e tinha comemorado. Os amigos deixaram ele sair do jeito que estava porque, afinal, era o dia dele e eles todos estavam meio embriagados. Ele entrou no carro e depois de passar por 18 quarteirões e 3 sinais verdes, ele passa por um vermelho sem se importar e colide com o outro carro vindo a sua direita. Com sorte, ele não ficou muito machucado, apenas algumas fraturas pequenas. O outro motorista quase nem se machucou devido ao air bag, mas está pensando em processar o irmão bêbado do rapaz no café pelos danos sofridos, tantos no carro quanto morais. Por causa da batida, ele perdeu o nascimento do segundo filho. A mulher ficou nervosa, revoltada por ele não estar lá na hora, mas ficou muito feliz de segurar seu filho.

Eu foco em tudo, eu foco em todos. Vejo três casais saindo, dois entrando. Vejo uma morena esbelta e linda entrando, perguntando alguma coisa pra uma das atendentes e logo depois saindo. Eu vou escrevendo em meu caderno suas aparências, suas atitudes. Não gosto das repercussões de escrever num notebook ou num tablet. Prefiro a folha de papel. Imagino meu mundo com cores e o rabisco em traços pretos, quase borrados, pelo cenário branco do caderno. Ignoro linhas, ignoro tamanhos. Vou apenas escrevendo e pensando e sentindo e respirando e vendo as pessoas passarem tão belas só belas enquanto escrevo nem pontuo apenas para escrever o mais rápido possível e deixar todas as ideias no papel antes que elas se vão e se reprimam em alguma parte do meu cérebro que eu não consigo desvendar e fiquem perdidas pela eternidade até que um dia eu as sonhe e as esqueça de novo sem pontos ou vírgulas ou pausas Ou Sentido nas maiúsculas Porque elas não precisam Ter sentido Enquanto Vou escrevendo.

De repente, ouço o sininho do café. Levanto a cabeça e a vejo, a mulher mais linda que já vi na vida. Gostaria de caracterizá-la, mas minha central de informações acabou de travar. Eu só tenho olhos para ela. Se ela quiser, eu sou dela. Pode me levar para qualquer lugar. Ela vai entrando e olha para mim. Eu com certeza devo estar babando. Ela abaixo a cabeça, reprime um sorriso, levanta a cabeça de novo e sorri em minha direção. Eu entro em delírio, em êxtase. Minha musa vai andando e se encontra com grupo de amigos que se senta à minha esquerda, mas ainda dentro do meu campo de visão. Eu continuo os observando, A observando. Ela senta e olha mais uma vez para mim, sorrindo aquele sorriso que me tornou totalmente dela em questão de segundos. Eu abaixo o rosto. O contato visual vai me arruinando. Tento me focar em outras coisas e me sufoco em esperança, medo e vontade de ir até lá, pegá-la pela cintura e beijá-la. Resisto a tentação. Foco-me na mesa, seguro a caneca de café com força. E do nada eu vejo uma silhueta se sentando na cadeira a minha frente. É ela. Eu sei que ela e ela me diz oi e eu morro por dentro deus eu quero pegá-la transformá-la em minha namorada minha amiga minha alguma coisa minha alma minha só minha meu amor minha musa minha esposa minha eterna meu sentido de viver essa vida meu ar. Eu digo oi de volta e ela me sorri de novo, daquele mesmo jeito de antes. Ela me pergunta algumas coisas, já nem lembro mais o quê. Eu respondo. Faço minhas perguntas. Ela se confirma em minha mente. Vamos conversando e conversando até todos os amigos dela na outra mesa terem indo embora, o café estar quase fechando e ser quase outro dia. Saímos e andamos pelas ruas. Vamos caminhando até o meu prédio porque é mais perto. Convido-a a entrar. Ela entra. Ela repara na minha coleção de cds, elogia meu gosto musical. Vê meus livros, tantos e tantos livros. Ela começa a falar sobre eles enquanto eu percebo que ela com toda a certeza do universo é a tal. Pego um pouco de vinho, encho suas taças, sentamos, tomamos e nos beijamos. O beijo vai se aprofundando, ficando mais intenso, mais sensual, mais sexual. Quando reparo, estou nu em cima dela e ela nua, se abrindo para mim. Rolamos pela cama até estarmos cansados e então eu durmo.

Quando acordo, estou no café e ela, aquela que levei pro apartamento, passa pela porta, segue reto pelo corredor até achar a mesa dos amigos, a mesma mesa de antes. Beija o namorado e começa uma conversa animada com todos eles. Sonhava tanto acordado que não soube logo que tudo que se passou foi apenas um sonho. Eu a amei durante a eternidade breve daquele devaneio de um jeito que eu nunca tinha amado alguém de verdade. Imaginei coisas e a amei. É. Sobretudo eu a amei. Ela era de verdade, ela era real, menos em minha vida. Meu desapontamento ficou forte demais e eu me levantei da mesa. Fui até balcão enquanto pensava não Nela, mas nas Outras, aquelas mulheres que fizeram parte da minha vida e deixaram pequenas ou grandes cicatrizes metafóricas pelo meu ser. Todas elas se vão, até as fruto da imaginação. Apoiei-me no balcão, perguntei quanto eu devia ao meu amigo, dono do café. Ele disse que era por conta da casa porque ele sabia que eu gostava de lá fazer meu trabalho e fazia minha propaganda habitual. Eu agradeci, e quando me virei, a Moça apareceu na minha frente segurando o celular nas mãos. Ela me sorriu um sorriso, do mesmo jeito que eu imaginei, e seguiu em frente enquanto digitava no celular. O namorado surge logo depois. Eu vou andando, dando pequenas olhadas para trás e saindo até chegar à porta. Saio do café e paro. Não sabia exatamente o que fazer. Trabalhar mais escrevendo sobre pessoas que eu nunca iria conhecer de verdade para botar em meus livros de verdade? Ir para casa e sonhar mais sonhos acordados ou sonhá-los dormindo? Ir até o bar que me convidaram para ir semana passada e passar a conhecer gente de verdade que não me agradaria, mas, possivelmente, elevaria minha libido e me daria um pouco de satisfação? Todas as alternativas me parecem ser horríveis, excluíveis, tanto em relação ao que eu quero quanto ao que eu sou. Decidi então voltar para casa, onde poderia sonhar em solidão com meus amores imaginários.

A vocês, aos meus amores imaginários, minhas saudações e meus agradecimentos. Minha vida seria mais vazia sem o vazio que vocês me causam e preenchem.