domingo, 6 de outubro de 2013

Cinzas fora do cinzeiro



São duas da manhã quando tento tragar um cigarro e percebo que fumei meu último maço. Não há muito o que fazer agora que as lojas estão fechadas, então mantenho a sensação de irritação e cansaço que gostaria de matar com um pouco de tabaco. Elevo minha mente a patamares ausentes até alguns momentos atrás. Respiro o ar de maneira pura e me irrito com a leveza com que as coisas se carregam e se pronunciam. Fico cansado de ficar olhando para o teto, pensando em mil e uma coisas diferentes sobre uma vida já estranha, meio patética; uma vida que não tenho muito orgulho de ter vivido; uma vida que eu teimo a continuar vivendo e dando satisfação. E, por algum momento, minha mente se esquece da ausência e levanto o braço para alcançar outro cigarro quando uma nova irritação me atinge de maneira mais bruta. Meu vício se mostra complexo, egoísta, sem gostos e sem cheiros. Uma nota cinza, numa fumaça cinza, num dia cinza. Já pensei em largá-lo. Abandoná-lo na esquina entre a liberdade e a exaltação. Comprei adesivos de nicotina, mas sempre me pego com um isqueiro na mão e uma fumaça ardente nos pulmões. Uma nota cinza, numa fumaça cinza, num céu cinza, numa expressão vazia de sensações módicas e verdadeiras. Um verdadeiro festival de cinzas. Uma vida numa guimba de cigarro jogada pela janela do carro e, de repente, uma queimada à distância de meus olhos e de minha consciência. Relaxo, de maneira tensa, na cadeira e olho para o teto tentando me acalmar da falta de algo que considero importante, mas que poderia muito bem viver sem. Penso em "comos". Como poderia viver sem aquela vida passageira, louca e má. Como poderia largar o vício e o medo e sair sem preocupações e com a cabeça erguida numa fantasia real. Como poderia esquecer, por um momento, do tempo cruel. Talvez eu largue o vício. Posso aproveitar que estou sem maços e a economia anda pegando no meu pé. Posso gastar menos e diminuir as chances de ter problemas respiratórios. Posso parar e ser alguém diferente. Essa é a minha chance. Acabo levantando da cadeira e pensando que vou pegar meu carro para trabalhar de manhã e não passarei na mercearia para comprar cigarros. Não seguirei a mesma rota. Não manterei a mesma vida. Irei trocá-la, cambiá-la, transformá-la. Vou esquecer daquele passado estúpido e cruzarei todos os sinais vermelhos, proibições e limitações que implantei a mim mesmo. Eu mudarei de cidade, de endereço, de rosto e de trabalho. Escreverei para o jornal, viverei uma vida mais leve, sairei com os amigos, me apaixonarei por outra mulher e morrerei tendo vivido uma vida alegre, feliz e satisfatória. Sigo para cama com esse pensamento, deito e, quando percebo, já estou dormindo. 

Mas no dia seguinte eu passo na mercearia e compro cigarros. Volto para o trabalho, mantenho a casa e ausento o coração. Sigo a rotina, o mesmo caminho dirigido, sempre parando em sinais vermelhos e desacelerando em sinais amarelos. Quando acaba o maço às duas da manhã do dia seguinte, eu repenso em tudo que pensei e senti na noite anterior e em todas as outras que vieram e em todas que sei que ainda virão. Me pego nesse ciclo infinito e eu sei que a única coisa que varia de um dia para o outro é o avanço lento do calendário enquanto jogo as cinzas longe do cinzeiro.