segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Medos



Você me dá medo.

Talvez sejam os olhos; a semelhança que eu vejo neles quando os comparo com meus próprios. Eles brilham com aquela atenuada luz de outono, numa necessidade imediata de coisas boas, de amores bons, numa esperança mórbida. Talvez então sejam seus lábios; o tom de cor deles sendo pressionados a minha pele, sendo pressionados aos meus lábios, ao meu ouvido dizendo palavras que eu sei que só posso repetir para mim mesmo enquanto olho no espelho quem eu deixei de ser. Talvez seja a figura inteira de você, com suas mãos tocando as minhas, com seus cabelos cobrindo os olhos enquanto o vento nos corta, com seu sorriso corrosivo e vertiginoso, aquele sorriso que eu amaria resgatar do passado. Teus pés pisando na areia molhada, sua risada enchendo minha alma, o sol refletindo sua luz. Talvez tenha medo das músicas, dos sons que associei a tua imagem dia após dia, beijo após beijo, sol após sol, adeus após tudo. Todas aquelas músicas intensas, fortes, massacrantes, intoxicantes, nossas. Talvez seja medo de tudo que relacionei a você. Medo de você. Medo de me sentar sozinho num bar, olhar o celular e lembrar que nem tenho mais seu número de telefone. Medo de entrar na internet e nunca mais poder ver uma foto sua somente para fortificar minhas memórias. Medo de surtar ao ouvir teu nome. Medo de saber que encontrou alguém e que está feliz. Medo de que você seja feliz sem mim. Medo de que eu nunca seja feliz sem você. Medo de nunca amar alguém como te amei. Medo de viver essa vida sem saber o que fazer e o que há atrás das portas fechadas. Medo fatal de ter sido seu para sempre e nunca mais. Então toda a vez que você me vem a mente, eu tento te repelir, e espero que não tome isso como uma ofensa. Espero que só saiba que estou lidando com essa falta, com esse vazio sobrenatural que deixou em mim e que eu tento preencher sempre com alguma coisa inútil, como escrever esse texto. Não me leve a mal, querida, se eu tenho medo de você em mim. Se eu tenho medo de minhas próprias fraquezas e de minha própria credibilidade. Meu medo são seus olhos apontando uma arma nova para mim, e eu tento repelir de maneira inútil só para ser atingido no peito e morrer achando que a luz no fim do túnel era você, como um trem vindo me resgatar, como uma luz clareando a escuridão em mim. Meu medo sou eu pensando em você e na conta de estragos e saudades que terei que pagar ao final da noite enquanto digo "olá" mentalmente para você e espero que sua resposta seja diferente do indiferente silêncio da distância que nos separa. Mas eu desisto antes da resposta e me reprimo. Desligo o som e paro de ouvir nossas antigas músicas. Penso nas coisas ruins. Penso em você cantando, em você discutindo e em você saindo. Penso em você mentindo, em você odiando e em você ofendendo. Inspiro e logo depois expiro, jogando você fora com o ar que sai dos meus pulmões. Saio do cômodo e vou embora para que suas memórias nunca mais me peguem. Meu medo vira desespero e corro. Como para qualquer lugar em que não posso ser achado. Corro para afastar-me de você, corro sem você, corro demais só pra não te ver, meu bem. Corro e não vejo ninguém tentando me ajudar. Corro e corro e corro e corro. Corro tanto que me canso e deixo ser alcançado. No dia seguinte, eu morro de coração partido e descubro que a luz no fim do túnel era apenas um trem querendo me matar. Morro sem esperanças, sem amor e sem você. Morro de medo e com um vazio no peito, enquanto você sorri em outros bares, transformando seu medo em vigor, esquecendo de mim, vivendo sem mim, como eu sempre achei que faria.

Morto de medo, me ausento e envelheço, enquanto você continua quebrando corações, eficaz em seus métodos de conquista. Passo a vida fingindo coisas que não sinto e acabo me deparando com você na rua. Eu paraliso e você sorri para mim. Meu coração dispara e já sabemos o fim.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Individualismo, fones de ouvido e celulares

Entrando no ônibus, a primeira coisa que eu faço, após pagar o motorista e receber meu troco de volta, é olhar para os bancos na esperança de encontrar algum assento vazio e, com ainda mais esperança, que seja perto da janela (afinal, janelas são mágicas). Quando me sento no local desejado, eu logo pego meus headphones vermelhos e os coloco, me isolando daquele pequeno mundo até que eu desça do ônibus. 

Com o passar do tempo, da velha e cansativa rotina, eu começo a reparar em certas coisas que normalmente eu não repararia, porque também faço de forma inconsciente. Logo quando entro no ônibus, não procuro somente por um lugar vazio; eu procuro por dois lugares vazios: um para mim e um para ninguém, um assento vago. Busco a ausência de pessoas sentadas ao meu lado. E é engraçado perceber que todas as pessoas fazem isso sem uma exceção lógica. É como se todos quisessem sentar na janela e deixar o lugar ao lado inválido para outras pessoas, uma espécie de limitação dos contatos pessoais. E, cada pessoa que entra, escolhe uma dupla de assentos diferente até que metade dos lugares estejam ocupados. Só aí que elas são impulsionadas a ter que escolher com qual pessoa elas se sentem mais confortáveis, o que nunca é trabalho fácil, afinal essas mesmas pessoas não estão interessadas em interações, pelo menos não físicas, reais. Elas só querem entrar, pensar na vida e sair. Talvez olhar pela janela, imaginar mil e uma cenas distintas em suas cabecinhas tão complexas e maravilhadas. Mas é sempre mais do mesmo. Mais dessa isolação. 

E eu vou além dos lugares. Eu reparo em suas expressões e no que estão fazendo. Estão todas com seus celulares e fones de ouvido, em seus mundinhos particulares, exclusivamente construídos para que funcionem por quanto tempo for necessário. Essas pessoas estão falando no celular, mandando mensagens, verificando seus perfis em redes sociais, ouvindo músicas (como eu). Algumas até olham para fora, talvez pensando no amor de suas vidas, na dor profunda em suas almas, no que vai ter de jantar quando chegar em casa. Entretanto, o isolacionismo de cada indivíduo está ali, em seus fones de ouvido que logo, logo irão quebrar, em seus celulares que logo, logo irão trocar e em suas amizades tecnológicas que logo, logo vão se desconectar. 

Saio do ônibus sempre pensando nessas coisas, mas não tiro o fone de ouvido e nunca tento me aproximar de alguém enquanto estou lá. Uma parte de mim diz que não se importa e a outra diz que não vale a pena. Porém é algo a mais para pensar. Sigo até a sala de aula e reparo nas pessoas que lá estão: adolescentes, adultos. Olho para elas de maneira não reveladora, para não parecer estranho, e vejo todos com celulares em suas mãos e alguns com fones de ouvido em suas orelhas. Alguns até conversam entre si, mas o número de pessoas conversando é bem menor do que a quantidade de pessoas vivendo em seus próprios isolacionismos. Mudando o estilo do ambiente, pensaria que tinha acabado de entrar no ônibus de novo, porque a cena é igual. Pessoas vivendo em seus mundos fantasiosos e/ou virtuais. Escapando daquelas que não conhecem direito, escapando, às vezes, do amontoado de pessoas que se forma em algumas partes da sala. E todos presos em suas próprias criações. 

Sento em meu lugar habitual e olho para elas. Ignoro, com sucesso, as conversas, mas presto atenção nos celulares, no que elas estão fazendo. Não que eu me interesse por suas vidas privadas, em seus casos amorosos ou em seus pensamentos, sou alguém como elas vivendo em meu próprio isolacionismo de headphones, mas é curioso ver a cena se repetir por todo lugar que passo. Quando saio e vou em bares (que é uma raridade), vejo as pessoas olharem para seus celulares e conversarem por eles com pessoas que nem lá estão em vez de aproveitar o momento. Essa vida virtual começa a tirar a vida real delas.

Abranjo meus pensamentos para além dos outros locais e percebo o quanto as pessoas querem estar em todos os lugares ao mesmo tempo, mesmo que sejam lugares irreais. Todas elas tem contas na maioria das redes sociais, postam coisas sobre elas mesmas que muitos nem querem saber, mas que acabam se identificando. Dão um like, algo tão rápido e efêmero que, minutos após a ação, não lembram mais o que fizeram e nem o que leram. Todos bombardeados com notícias demais, pessoas desconhecidas demais, números demais. As amizades são avaliadas pelo número de conversas registradas no facebook. A popularidade, pelo número de likes em fotos do Instagram e em retweets no Twitter. O sentimentalismo fica esquecido em pequenos links nesse oceano de aleatoriedades, de desnecessidades, de isolacionismos reais e expansionismo virtual. E nessa sociedade capitalista e individualista, elas já ficam satisfeitas com seus consumismos desenfreados, com pequenas massagens no ego delas próprias, em estupidezes e indicações de como se sentem perante pessoas que nem conhecem de verdade. 

Então elas deixam os sentimentos verdadeiros de lado, perto do cinzeiro que nunca usam. Apelam para os números, sejam os de amigos numa rede social ou a quantia de reais que elas tem em suas contas, para gastarem com a coisa mais desnecessária que existe no momento. Elas ostentam seus poderes limitados através de suas músicas e de suas atualizações, abandonando a natureza real do espírito humano. Ou será que sempre fomos assim e só fomos piorando com o passar dos anos e do avanço gradativo das tecnologias pessoais? É comum deixar de lado questões como essa quando é sempre mais fácil viver na ignorância plena. Como já diziam: ignorância é uma benção. 

Acordo de meus pensamentos com um estalo e tiro os fones de ouvido. Ouço os carros passando na rua, as conversas paralelas e o som de chuva fina caindo. Olho para as pessoas e elas ainda estão em seus pequenos reinos. Algumas até chegam perto de mim e começamos a conversar. O tempo passa, os professores dão suas aulas e chega a hora de eu ir embora. 

Pego o ônibus mais uma vez e vejo a mesma cena se repetir. Coloco os fones de ouvido porque tudo isso parece ser maior do que eu e eu tenho certeza que seja. Chego em casa e ligo o computador, porque é mais forte que eu. Entro nas várias redes sociais que eu possuo, porque é mais forte que eu. Penso por um segundo que faz parte do sistema viver nessa forma de dependência. Todas as pessoas estão conectadas. Aquela senhora que sentou atrás de mim no ônibus está no meu facebook. Vejo ela postando fotos da filha mais velha, que acabou de se casar. Aquela garota bonita e charmosa que eu sempre tenho vontade de conversar está online, e seu perfil indica que é solteira e gosta das mesmas músicas que eu. Ela está ao toque de um botão. Eu posso conversar com todas elas, mas elas já me dão todas as respostas em seus perfis. Eu sei quem são. Às vezes até sei onde moram. Sei com quem andam, onde andam, que filmes gostam de assistir, que séries foram vistas na infância. Sei até mesmo alguns de seus pensamentos mais "secretos". Está tudo lá. Não é preciso muito trabalho. Elas se desligaram de suas vidas e resolveram viver no online da matrix, em seus isolacionismos e individualismos pessoais. 

No dia seguinte, as cenas são sempre repetidas, um episódio que já passou várias vezes na televisão, mas que ninguém liga de ver. Coloco meus fones de ouvido no amanhecer do dia e me deixo levar para longe dessa realidade cruel até que a noite se esgote e a bateria acabe.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Ponto de fuga


Teimosia em teu ser. Você diz que não liga e finge não ligar, mas está sempre com o celular vendo as horas passarem até poder fazer alguma coisa diferente. Não é como se pudemos ficar assim, lado a lado, impedidos de fazer quaisquer outras coisas. É apenas o teu desassossego regando as partes mais tristes da tua vida e impedindo que você siga em frente. Repete para você mesma que a vida é assim, uma vadia, uma criatura malévola que não se importa com você porque é teimosa demais em mudar alguma coisa. Segue tentando amar a mesma pessoa, fazendo as mesmas coisas ridículas, com os mesmos costumes, a mesma falta de ousadia de mudar a rotina. Só que você sabe que tem que fazer mudanças e nunca liga para alguém te ajudar. É teimosa. Acha que manter a cabeça erguida sempre vai te impedir de cair na próxima esquina. E estando ao teu lado, eu reparo mais nisso no que no resto de você. Eu vejo a tua queda, eu a saboreio como um prato horrível que me foi servido, e te aviso, e te garanto das coisas, e tento ajudar, mas teus olhos olham para mim daquele jeito sem jeito e percebo que você sabe de tudo isso e quer pedir ajuda, mas não sabe como e acaba por não fazer nada. Então você sai, eu te observo, seguindo teu encaminhar pela porta, vendo você sorrir daquela maneira pálida e sofrível. Pros outros pode parecer um sorriso sincero, afinal, você é teimosa demais até para revelar o que sente de verdade. Você vai passando por todos, dando sorrisos e abraços carinhosos como se o mundo estive sorrindo verdadeiramente para você. Mas não é isso. Você sorri para não te questionarem, você abraça para ser abraçada e você anda para ir para longe dessa vida que você já não quer mais viver. Vejo você indo, se esvaindo a cada passo dado em direção à rua, reticente em sua teimosia, tentando não partir mais corações além do teu ferido. 

domingo, 6 de outubro de 2013

Cinzas fora do cinzeiro



São duas da manhã quando tento tragar um cigarro e percebo que fumei meu último maço. Não há muito o que fazer agora que as lojas estão fechadas, então mantenho a sensação de irritação e cansaço que gostaria de matar com um pouco de tabaco. Elevo minha mente a patamares ausentes até alguns momentos atrás. Respiro o ar de maneira pura e me irrito com a leveza com que as coisas se carregam e se pronunciam. Fico cansado de ficar olhando para o teto, pensando em mil e uma coisas diferentes sobre uma vida já estranha, meio patética; uma vida que não tenho muito orgulho de ter vivido; uma vida que eu teimo a continuar vivendo e dando satisfação. E, por algum momento, minha mente se esquece da ausência e levanto o braço para alcançar outro cigarro quando uma nova irritação me atinge de maneira mais bruta. Meu vício se mostra complexo, egoísta, sem gostos e sem cheiros. Uma nota cinza, numa fumaça cinza, num dia cinza. Já pensei em largá-lo. Abandoná-lo na esquina entre a liberdade e a exaltação. Comprei adesivos de nicotina, mas sempre me pego com um isqueiro na mão e uma fumaça ardente nos pulmões. Uma nota cinza, numa fumaça cinza, num céu cinza, numa expressão vazia de sensações módicas e verdadeiras. Um verdadeiro festival de cinzas. Uma vida numa guimba de cigarro jogada pela janela do carro e, de repente, uma queimada à distância de meus olhos e de minha consciência. Relaxo, de maneira tensa, na cadeira e olho para o teto tentando me acalmar da falta de algo que considero importante, mas que poderia muito bem viver sem. Penso em "comos". Como poderia viver sem aquela vida passageira, louca e má. Como poderia largar o vício e o medo e sair sem preocupações e com a cabeça erguida numa fantasia real. Como poderia esquecer, por um momento, do tempo cruel. Talvez eu largue o vício. Posso aproveitar que estou sem maços e a economia anda pegando no meu pé. Posso gastar menos e diminuir as chances de ter problemas respiratórios. Posso parar e ser alguém diferente. Essa é a minha chance. Acabo levantando da cadeira e pensando que vou pegar meu carro para trabalhar de manhã e não passarei na mercearia para comprar cigarros. Não seguirei a mesma rota. Não manterei a mesma vida. Irei trocá-la, cambiá-la, transformá-la. Vou esquecer daquele passado estúpido e cruzarei todos os sinais vermelhos, proibições e limitações que implantei a mim mesmo. Eu mudarei de cidade, de endereço, de rosto e de trabalho. Escreverei para o jornal, viverei uma vida mais leve, sairei com os amigos, me apaixonarei por outra mulher e morrerei tendo vivido uma vida alegre, feliz e satisfatória. Sigo para cama com esse pensamento, deito e, quando percebo, já estou dormindo. 

Mas no dia seguinte eu passo na mercearia e compro cigarros. Volto para o trabalho, mantenho a casa e ausento o coração. Sigo a rotina, o mesmo caminho dirigido, sempre parando em sinais vermelhos e desacelerando em sinais amarelos. Quando acaba o maço às duas da manhã do dia seguinte, eu repenso em tudo que pensei e senti na noite anterior e em todas as outras que vieram e em todas que sei que ainda virão. Me pego nesse ciclo infinito e eu sei que a única coisa que varia de um dia para o outro é o avanço lento do calendário enquanto jogo as cinzas longe do cinzeiro.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Abaixo da superfície



É indubitável que sinto algo por você. Toda a vez que a ouço rir, eu quero engarrafar o som e levar para casa, colocar do lado da minha cama, no criado mudo, e abrir a garrafa toda a noite para dormir e sonhar contigo. Teus olhos são famintos e eu me entrego a eles sem cuidado algum; se me quiser, é só me ver aqui, me entregando de alma e coração. O sorriso é banal porque ele é angelical, lindo, brilhante. Olho para você sempre que posso e gasto toda a minha memória tentando lembrar de cada linha do corpo, de cada curva, de cada porém, entretanto e mas, e de cada ei, mais é lógico que podemos sair na sexta. Mas eu nunca sei por que tento escapar do pensamento, por que tento não descrever a mim mesmo aquela dor fatigante que sinto no meu peito ao vê-la com outro alguém. Talvez eu queira-a. Talvez eu ame-a. Talvez eu seja imbecil demais ao meu garantir de talvezes. Eu a amo e sou burro o suficiente para ficar sentado esperando você me amar enquanto se garante de amor a alguém que desprezo.

O perigo da jogada é me machucar, porém eu acredito que já estou machucado. O perigo maior seria tentar te ter. Afinal, eu te amaria sem precedentes, sem saídas (numa eternidade tão utópica que minha vida correria perigo).

domingo, 8 de setembro de 2013

Alvorecer



Era quase 6 da manhã quando eu desliguei a televisão e larguei a blusa no sofá. Tinha perdido noção do tempo enquanto assistia comédias românticas e sentia o velho agrado da nostalgia e daquele sentimento bem guardado que não sabemos dar um nome. Quando desliguei o aparelho, eu vi raios de luz ao redor da porta e da janela. Estava amanhecendo, eu me toquei. Fiquei um pouco sentado, olhando para o escuro, antes que eu me levantasse e seguisse o instinto tão obscuro de sair para ver a luz do dia. 

Quando cheguei a varanda, me deparei com um misto de cores no céu. Tons de arco-íris voando e colorindo o fundo e as nuvens com uma alegria nova. Luzes de postes iluminavam o pouco de escuridão que existia pela cidade enquanto o sol nascia. Elas, me observando na varanda, começaram a apagar, como se dissessem alguma coisa ou como se fossem altruístas demais para ficarem acesas enquanto uma luz mais forte do que elas era acesa. Elas dançavam num ritmo frenético que meus olhos, por vezes, não conseguiam acompanhar. Elas dançavam e acenavam e andavam de volta para casa, para longe das ruas, para longe das retinas, deixando o frio incendiar as entranhas de todos que estavam acordados. Mas era domingo, ninguém estava acordado e, quem estava, usava casaco. Eu não. Eu não pertencia àquela realidade; eu estava de pijama: uma camiseta velha e uma calça de moletom. Sentia o frio tanto fora quanto dentro de mim e não me importava. Não depois de ver comédias românticas fajutas de 3ª na tevê. Não depois de ficar observando uma blusa que ela já havia usado e que me trazia tantas memórias, algumas ativadas pelo cheiro, outras apenas pelo tato. Não depois de estar naquele lugar vendo o que eu via, como uma esperança, como uma lembrança de felicidade em algum horizonte distante.

Eu olhava e ficava cada vez mais admirado e estagnado em meus próprios pensamentos melancólicos. É como se eu não precisasse mais da noite para chorar; poderia fazer isso ali mesmo, na varanda com o sol e o restante do céu como meus cúmplices de um crime sem perdão. Mas já haviam muitas marcas que faziam parte do plano, do crime, então para que precisaria me preocupar com essa pintura de tela em plena manhã de descanso enquanto eu deveria estar dormindo em minha cama sem me preocupar com coisas além do usual? 

Todos nós sabemos que é mentira bem contada dizer que vai deitar na cama e dormir bem, porque você olha pro teto do quarto e pensa em sua vida e o que fazer com ela, do mesmo jeito que eu fazia ali fora, tentando sentir alguma coisa diferente, tentando escapar-me da confusão eloquente daqueles dias estranhos enquanto olhava para um lugar que eu não pertencia. Minha vida era a noite. Os bares cheios, as músicas altas, as pessoas desconhecidas. Marcas de um passado que quer ser apagado definitivamente. Via naquela paisagem algumas respostas para essa inconveniência, mas nunca quis saber a pergunta pois acabei virando as costas e ir dormir um pouco. Afinal, eu era um intruso naquele cenário diário. Uma imprecisão no meio do dia claro. Voltei pro escuro, para a fictícia noite, e me dirigi ao meu quarto. Deitei na cama e tentei dormir, mas não consegui.

Meu coração finalmente estava com esperanças.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

À procura



Você sai por aí tentando encontrar alguma coisa, mas não sabe o quê. Passa pela livraria, checa os preços, os títulos, vê as pessoas, as observa enquanto elas pegam livros que você nunca pegaria, enquanto elas vivem vidas que nunca viveria, e não se dá por satisfeito. Diz para a vendedora que só estava dando uma olhada e logo se vai para a rua, ainda tentando encontrar algo que satisfaça. Então caminha mais um pouco e entra numa loja de roupas. Verifica preços e estilos, roupas que vestiria, roupas maiores que você, roupas menores que você, roupas vulgares, roupas sedutoras, roupas ridículas, roupas que nunca vestiria. Você olha para as pessoas em volta, checa o que estão provando, o que estão vestindo, o que estão comprando e até mesmo o que estão deixando de lado. Quando a vendedora pegunta se poderia lhe ajudar, você diz que estava dando apenas uma olhada. Sai da loja ainda com um vazio latente e decide por procurar novos horizontes. Entra numa lanchonete e vai vendo os preços das comidas, lanches, refrigerantes, sucos e doces. Se senta numa mesa e espera a garçonete lhe atender somente para lhe dizer que não sabia o que comer e, quando ela virou as costas porque você tinha pedido um pouco mais de tempo para gerar uma decisão, você sai do lugar, enquanto repara em algumas conversas desajeitas, em alguns casais e quase casais. Em improváveis casais, em amigos que seriam sempre amigos, em pessoas desconhecidas que te desconheciam e ignoravam a sua existência enquanto saía envergonhado para o olho da rua. Você fica atordoado, desesperado, pensado onde ir. Vai para a perfumaria e verifica os preços, as marcas, as pessoas. Joga alguns perfumes em você e sente um pouco de desgosto na língua, como um amargo azedo no doce da existência. Quando uma das garotas que lá trabalham lhe pergunta se poderia te ajudar, você diz, com uma voz já sofrida, que estava apenas dando uma olhada. Você repara nas pessoas e em como elas se sentem bem cheirando bem, parecendo bem. Você sai de novo da loja, já sem esperanças. Segue para o supermercado, pega um carrinho, olha os preços, vagueia por todos os corredores em busca de alguma coisa. Vê as pessoas andando, magras, gordas, feias, bonitas, simpáticas, carrancudas, mal-humoradas, alegres, tristes, infelizes, melancólicas, caladas, falantes, sozinhas, acompanhadas, altas, pequenas, mulheres, homens, garotos, garotas, guris, gurias, meninos, meninas, punks, roqueiros, sambeiros, funkeiros, aventureiros, introvertidos, extrovertidos, issos, aquilos. Ninguém te pergunta o que você quer e acaba saindo de lá com as mãos vazias, pendendo nos bolsos da calça. Sem saber onde ir, anda a esmo e vai parar numa praça lotada, onde não há preços para serem vistos, apenas as pessoas e os bancos, vazios e lotados. Você senta em um e decide olhar para o céu em busca de algo que você não sabe o que é. Olha para as estrelas, já é noite, sua andada se estendeu quase até a madrugada. Conta as estrelas, as arranja de outras maneiras, cria formas abstratas, imagina cenas e não cenas, tenta arrancar o brilho de todas elas e levar para casa em teu olhar. Você abaixa a cabeça e olha para a praça, para todas as pessoas andando, se divertido, sofrendo em seus silêncios agudos e ainda não sabe o que está procurando. É quando passa um ser que toma a sua visão e o brilho que havia roubado das estrelas. Um ser que você já havia visto centenas de outras vezes, um ser que ao seu pensamento já havia sido levado milhares de vezes. Um ser que você conhece de seus dias e de seus sonhos acordados. Um ser etéreo, vindo de seus maiores sonhos além da realidade. O ser caminha numa direção perpendicular aos seus olhos, e anda, e caminha, e brilha e vive. É nele que você deposita sua visão, sua audição, seu olfato. Gostaria de ir lá e lhe apertar contra o peito, mas não sabe porque está preso, sentado num banco estragado de uma praça velha e cheia de pessoas. O ser olha para você e, finalmente, você sabe o que anda procurando em todas as lojas que foi e saiu. Em todos os estabelecimentos que entrou e foi embora. Em todas as perguntas de ajuda. Você procurava algo e não sabia onde encontrar, porque o que procurava não podia ser vendido, não podia ser alugado, não podia ser comido. Só podia ser visto, sentido, cheirado, observado. Era algo além da incompreensão e nem as estrelas salvariam sua alma do sentimento intenso e tumultuoso que era estar olhando para aquele ser de outra dimensão, feito de fantasia, e ter o coração expandido e esmagado num paradoxo que poderia ser explicado em uma palavra, mas que nunca expressaria o verdadeiro ardor que sentia no momento de encontro de seus olhos com os dele, num brilho tão perverso que a vida, finalmente, fazia sentido. 

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

nós, pós, após



ao pensar na palavra tal dita, maldita
ouso me dar um leve arrepio
para que cada sopro de cada assobio
de exaultação te trouxesse para cada parada
fulminante que consigo ter e conter
ao tentar repelir o teu ser de meu ser

ao imaginar o que poderia ter dito
retiro o pensamento com um suspiro
incendiando o ar que respiro
numa tentativa de reesquecer o que poderia ter tido
se você ficasse pro jantar de quarta
e te dissesse o quanto nossa solidão me aparta

ao falar de algo que rima com você
corrijo cada rima com pavor
de me inundar no forte odor
do perfume que usava com tanto sabor
enquanto carregava nossas dores numa mala de amargor
e ignorava a rima
e a métrica
do frequente labirinto que era
ser minha

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Sobre escrever e ser



Escrever sempre foi algo importante.
Não importa se for no caderno ou na internet
Nem se for a mão ou através de uma máquina
Escrever é sempre algo importante
É o grito potente de cada sentimento já sentido
O cheiro constante de cada vaga lembrança do passado
O vento e ventania e tempestade que chega de cada nostalgia e argumento pensados
O afeto incondicional de cada coisa em teu ser, de até mesmo coisas que nunca pensou em pensar
Coisas que nunca pensou em fazer, coisas que nunca pensou em sentir
Coisas que nunca se imaginou imaginando

Escrever é a liberação de tudo aquilo que você é
Tudo aquilo que já foi
Tudo aquilo que um dia você será
Ao escrever, colocamos nossas essências em cada palavra e cada ponto final
Em cada interrogação e exclamação
Em cada vírgula que entrepausa as mágoas e alegrias da vida
Em cada sentença que brandimos sem espadas
Mas sempre com penas
Talvez pena até de nós mesmos

Escrever é aquilo que nos faz maiores do que tudo
É passar adiante conhecimentos e verdades
Imaginações que ninguém jamais havia chegado perto
E, fazendo isso
Ficar um pouco mais próximo do estranho mundo que vivemos
De cada estranho que nunca viu
De cada sentimento que já sentiu
De você próprio

Escrever é brincar com palavras
Uma
De
Cada
Vez
Como tijolos de construção
Construindo a ponte que nos leva da margem do desconhecido 
Até a margem do etéreo

Escrever é a arte de viver
É a arte de ser
É a arte de se encontrar no mar que você navega
É a arte de se emocionar
É a arte de ser aquilo que quiser ser

Para todos aqueles que escrevem, sem necessariamente ter escrito um livro, sem necessariamente ter um blog, sem necessariamente ter publicado ou mostrado alguma coisa que já escreveu para alguém, feliz Dia do Escritor! Os dias ficam mais felizes quando vocês escrevem.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Partituras da partida

É um tanto quanto estranho realizar que as pessoas realmente partam. Elas partem para outro lugar, elas partem o teu coração, elas partem suas próprias vidas. Elas teimam em dizer que nunca te deixarão e sempre partem para longe dessa realidade cruel que, por uma necessidade, apelidamos de vida. As pessoas partem. Elas não te deixam pra baixo, elas vão pra baixo, enterradas a 7 palmos longe da sua visão e de seu tato, passando a morar somente na memória partida que você tem da pessoa antes dela partir de sua realidade cruel. Todos partem, todos partirão, tudo passa, tudo passará, todos passarão, todos passarinho. E quando vem aquele sinal dizendo que alguém te deixou, partiu, para longe, bem longe, daqui, seu cérebro simplesmente não concebe o ideal. Até pensa na possibilidade ridícula de rir, porque tem que ser uma piada, tem que ser algum gesto de mal gosto contra você. Ninguém abandona ninguém nesse mundo, isso é coisa de filmes, de livros, de séries, de cultura. Na vida isso não existe, então eu tô quase rindo. É geralmente nessa hora que chega o desconforto, a necessidade de se acalmar porque tudo está tão calmo depois da partida do alguém. Tudo fica absolutamente em silêncio dentro de você, esperando a hora derradeira da metamorfose do desconforto em tristeza e, depois da tristeza, a irreparável certeza que somos tão leves que a qualquer hora o vento vai nos partir para longe de nossos sonhos. A partida sempre é triste, ninguém gosta de dizer adeus. O mundo fala e transcorre, e sua dor, que parecia uma passageira de algum trem, acha um cantinho solitário dentro de seu coração para ficar alojado ali pelo tempo que achar conveniente. A pessoa partida de sua realidade cruel não precisa ser conhecida, sentida, amada, abençoada, guardada nas memórias vãs do passado. A simples referência já te traz o aviso rápido que aquilo não é legal. É desconfortante. É triste. É passageiro. Mas nunca é rápido, nunca é passageiro. Por menor que a agonia, que a dor, seja, nosso coração é mais vazio do que cheio, e a amargura começa a tomar forma. Você chora na esperança de liberar tudo isso, e nem sempre tudo vai, nem tudo parte, apesar de ter o coração partido com a partida do par que lhe causou essa partura. A dor da partida é algo que somente o receptor da notícia sente. O labirinto de sua mente começa a dar mais voltas, a alma começa a decair em tristeza, talvez até em solidão. A voz fica estagnada. O clima fica mais frio, apesar do calor de 30 graus. Começa a nevar em você, fora de você. Era, ela, fora de você. No meio do silêncio você tenta dar voz a razão prática de existir sem partir e não consegue. Você chora mais, e mais, e mais. Talvez nunca por fora, mas sempre por dentro. Teu ser se repele. Teu ser apela para as memórias do criado-mudo. Uma fotografia. Uma origem de todo aquele sentimento que parece já tão distante porque você quer ficar nas nostalgias da pessoa que se foi. A partida é o que há e, para quem fica, só restam as lembranças partidas de uma vida que uma vez se partiu em cerca de 1001 pedaços por todo o teu ser e não ser. As possibilidades se zeram e sua bagagem incha. Teu coração quase te esmaga.

Para quem fica só fica a solidão, e o pensamento de como viver se te partiram ao partirem. 

terça-feira, 9 de julho de 2013

Parecia que era minha aquela solidão


Nós no maior buraco negro da história. A condensação do nosso amor era sagaz, firme e, se me permite dizer, completamente patética. Eramos duas almas sem rumo e sem local de parada que se chocaram quando ambos tentaram atravessar o mesmo rio de incertezas no mesmo barco. Um barco já antigo, cheio de amarguras de vidas e incertezas passadas, de sonhos quebrados pelas mãos da vida e de vidas pobres de amor. É, eu me lembro de nos termos encontrado naquele barco, navio. Estávamos no mesmo barco, seguindo a mesma direção, e eu estava começando a achar que o barco estava afundando aos poucos. Do nosso encontro, a felicidade clandestina de dois imigrantes temporários. Do nosso reencontro, o amor de duas almas sintonizadas na mesma rádio. Do nosso beijo, a paixão louca de duas tempestades se chocando na formação de olhos, não castanhos, mas verdes e impulsivos como os trovões na praia. Seguimos o mesmo barco, na mesmo direção, por tempo indeterminado. Navegamos cada vez mais para um destino certo, que ambos ignoramos por medo e vergonha de admitir alguma vez que algum de nós estava errado. Sabíamos que era tudo errado, e nosso sentimento de união era mais forte do que a frequência dos erros que atingia nossos peitos e ouvidos. Era amor, não tínhamos dúvidas. Era amor, passageiro e de carona no pior dos barcos, navios. Quando batemos na encosta e reparamos que trilhávamos caminhos diferentes, quisemos mesmo assim nos manter juntos através de uma corda que se esticava cada vez que um de nós dava um passo em frente. Um seguia para frente, outro ia para atrás. E a corda aguentava. Nossas comunicações começaram a se tornar falhas enquanto o tempo demorava para passar e tudo ficava cada vez mais pesado em nossas costas. Ao sair da praia que desembarcamos, eramos apenas mais duas almas solitárias, desesperadas por uma companhia, fosse de qualquer tipo. Andávamos e corríamos a toda a hora para frente para ver o que havia em nosso futuro, mas nunca dava certo; sempre estávamos para trás. Eramos nós, nossos nós atados a corda que ficava cada vez mais inconstante e quebradiça. Nós no buraco negro da solidão e da exaustão até que um dia a corda se quebrou. O amor que era amor se despedaçou e a paixão que era paixão nunca se sentiu mais perdida. Nosso amor foi passageiro, engavetado nas ondas do mar e do amar. Não precisamos mais dele agora que estamos em terra firme e podemos viver nossas vidas de maneira retilínea, sem os distúrbios dos ventos em nossos corpos. A inconstância das águas nos fizeram ficar juntos e a solidez da terra nos fez separar. De lados opostos, rezamos para juntos ficar. Mas, por fim, só pudemos nos lamentar.

E agora, firme em meus pés, longe da areia da praia, meus pensamentos voltam a você, aquela que foi minha companheira de viagem por um tempo que pareceu durar mais de uma eternidade. Talvez seja saudades do fundo da alma ou talvez seja somente o frio que pede para amar alguém. Mas é óbvio que não te amo. Pelo menos não mais. Nossa trágica história de turistas apaixonados é agora somente pó através da fechadura do tempo, num vento que vai passando e não consegue deixar nada intacto. Fizemos o que tivemos que fazer e nos findamos. Fincamos nossos pés na terra firme e dissemos um para o outro "foi bom ter te acompanhado, mas, agora, a viagem acabou, pelo menos para nós, pelo menos naquele barco". É. A viagem acabou, aquela viagem que deveria nos unir e nos separar, como prometera e como cumprira. Só nos resta seguir o mesmo mapa sem rodovias, sem estradas, sem ruas ou lugares conhecidos que tínhamos desde sempre, um mapa em branco com apenas lugares nenhuns, na fatal fé de que encontraremos alguém para nos acompanhar por essa viagem infinita que é a vida.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Para Janine (ou "Vá então, há outros mundos além deste...")


Para Janine, escrever aquela carta deveria ser muito complicado. Mas não foi.
    
    Ela era uma escritora fascinante, mas nunca prestigiada e ela já tinha em mente a maior de suas obras. Na verdade, já iria acabá-la. Se sentou à frente de sua Underwood, sua amiga mais antiga e começou a datilografar o que seria uma obra-prima.
    Ela repensou todas suas idéias, todos os motivos que a levaram para aquele instante e garantiu que estava fazendo a coisa mais certa possível consigo mesma. Aquele pedaço de papel seria sua entrada monumental para a história da literatura, mesmo que não houvesse como comprovar isso. Ela simplesmente sabia e sempre fazia com maestria o que sabia.
    Os dedos passavam pelas teclas e o barulho de cada escrita ecoava pelo mausoléu que se tornou sua casa. Ela só trabalhava e trabalhava, sempre no mesmo local agonizante que era o mundo da economia. Se sentia descartada dentro daquele banco, se sentia isolada e mesmo sendo muito esperta (e até muito inteligente quando se tratava de exatas) não conseguia se encaixar.
    Mas ela nunca desistiu de seus sonhos: ter o nome marcado na história e ter uma de suas obras considerada um clássico da literatura mundial. Escrevia todos os dias e juntou dinheiro para comprar sua maquina de escrever. Criou um blog e fermentou ideais que nunca foram concretizados. Janine ainda vivia no inferno, sem amigos próximos, num trabalho que ela odiava com todas as suas energias e com um coração esmagado continuamente por amantes pretensiosos e extremamente egoístas. E enquanto ela escrevia, ela lembrava o rosto e o nome de cada infeliz. Fazia questão de lembrar deles enquanto datilografava, simplesmente para colocar toda sua essência em papéis que poderiam ser muito bem descartados.
    Janine se entreteve por mais tempo que imaginava e as páginas escritas nunca ficavam do jeito que queria. Não a agradavam. E cada folha péssima que ela digitava, ela amassava e jogava por trás de seu ombro, formando uma pequena pilha de bolas de papel.
    Se concentrou um pouco mais no serviço e finalmente escreveu aquilo que tanto queria. Para ela, escrever era algo refrescante, mas às vezes era algo maligno e uma boa idéia poderia não sair muito bem ao ser transposta de sua mente ao papel. Entretanto, ela sempre alcançava o que queria ao escrever, e o que ela tinha passado a limpo era sua entrada para o mundo fantástico dos autores famosos.
    Olhou para o relógio e viu que eram 01h12. Abriu o blog e programou um post para depois das duas da manhã. Releu o texto recém nascido duas vezes e o colocou ao lado de sua Underwood. Aquela era a hora e precisava fazer rápido. Como seu pai dizia: “Quando uma oportunidade aparecer, e você a estimar muito, agarre-a com unhas e dentes e não solte-a até alcançar seus objetivos”. Ela não iria desperdiçar mais uma oportunidade. Pegou a cadeira em que estava sentada e a moveu de lugar. Ficou em pé nela e abriu a porta de cima de seu armário. Pegou todos os livros que havia escrito e nunca havia lançado por destino do mundo. Desceu da cadeira e deixou os livros no lado oposto de sua obra-prima. Livros, máquina e magnum opus, tudo junto.
    Pegou a cadeira novamente e levou para outro canto. Verificou todas as gambiarras e se certificou que nada iria falhar de última hora. Se ergueu mais uma vez na cadeira, agarrou sua oportunidade e nunca mais a soltou.

domingo, 30 de junho de 2013

Engano


acho que meu telefone está danificado

quando ligo, às vezes, ouço ela falar
e ela nunca ouve o que digo
nem quando digo que a amo
ou quando chego perto de fazê-lo

às vezes, ela me escuta pelo outro lado da linha
e eu, afirmado em meus desejos, tento escutá-la
ao máximo que posso, sempre que posso
mas só sinto a friagem do telefone em minha orelha
e o ruido estático do
"até que poderíamos dar certo"

quando a ligação é completada e um consegue ouvir o outro
nada parece ocorrer do jeito certo
porque eu falo de amor e ela de ligações não completadas
números discados que não me pertencem
todos eles tão alheios quanto o ar que respiramos;
porque eu uso um tom de voz afetado
e ela não liga pra chamada
e nem tenta discar o número de emergência

porque eu deixo me elevar pela sensação de sua voz
e ela nem se preocupa
e apenas desliga o telefone sem dizer adeus

deve ter uma falha grande de comunicação e discagem
no meu telefone, que nunca disca o número certo

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Toda a forma de poder


É difícil fingir ignorância quando você sente que o que chega até você é forte, é nocauteador. 


Um dos meus avôs, o meu materno, foi mártir da Ditadura Militar, mas quem se importa com isso, não é? As pessoas não se importam com o que foi a Ditadura Militar porque ninguém de suas famílias sofreu o baque que os integrantes da minha sofreram. Eu cresci num ambiente em que jornalistas, cineastas e políticos (originalmente de esquerda) vinham falar com a minha família sobre o que acontecera ao meu avô. Eu soube diretamente das pessoas que viveram a repressão da Ditadura Militar o que foi aquilo tudo. Conversei com guerrilheiros, com políticos, com trabalhadores que consideravam, e ainda consideram, meu avô um heroi, que, infelizmente, quase nunca é lembrado pelos livros de história.

Com todos esses relatos, eu criei uma imagem quase nítida de como foram aqueles anos de repressão, em que um "piu" era recebido com uma cacetada, uma prisão, uma tortura. Em que as pessoas temiam qualquer forma de expressão. E é impressionante ver o quanto progredimos, já que os relatos que li sobre as manifestações, principalmente em São Paulo, lembram tanto a Ditadura Militar, com sua repressão desonesta, sem motivação verdadeira, violenta até a última gota.

Leio e leio cada vez notícias, mais e mais depoimentos de pessoas que estiveram lá, sentiram na pele e na alma o que foi aquilo tudo. Pessoas comparam com a Ditadura. Pessoas comparam com o AI-5. Pessoas são presas, são machucadas. Imprensa é ferida. Cada coisa que eu leio, eu consigo fazer uma conexão com a década de 60 e 70. Temos nossa liberdade de expressão, mas, aparentemente, ela não pode ser aceita porque o governo não nos permite verdadeiramente isso. Ainda estou surpreso pelo fato de poder estar escrevendo na internet no conforto da minha casa sem ouvir uma bomba de gás lacrimogênio vencida ecoando pela janela da sala.

Ficamos ignorantes, desleixados. É muito mais fácil aceitar as coisas do que correr atrás delas, de tentar mudar alguma coisa. E acho isso que acabou. As manifestações estão aí, não somente em São Paulo, mas no Rio de Janeiro, em Brasília (!), em Maceió, em Fortaleza, em Porto Alegre. Esse é o povo brasileiro realmente acordando para lutar pelos direitos garantidos em constituição, mesmo que a mídia não os ajude e só deturpe os fatos.

Eu não sou contra nenhuma das manifestações. Se eu pudesse, estaria no meio delas, mesmo que isso sugerisse ser espancado, levar tiros e ter uma garrafinha de vinagre tirada de mim (porque eu poderia fazer um explosivo, é lógico). 

E o mais engraçado de tudo é que amanhã começa a Copa das Confederações. Ano que vem tem Copa do Mundo. E em 2016 tem Olimpíadas. Fico me perguntando como a polícia vai conseguir proteger os gringos se eles fazem o que fizeram com o povo brasileiro que só estava exercendo o direito de ser um cidadão, sem violências, até a hora que as tropas de choque chegaram.

domingo, 26 de maio de 2013

Terror


Jurei solenemente que iria deixar você tão pra trás que nem em minhas memórias eu iria te encontrar. E, por um momento, eu pude acreditar nessa incerteza como algo próprio do meu ser e do nosso pequeno jogo de romance. Era tudo uma questão de tempo até eu ouvir o primeiro estrago que sua partida me fez. E depois de ouvir, seguir o viver da vida sem ao menos senti-la como deveria sentir. Sempre naquele gosto de amargo na língua, queimando todas as entranhas como uma coisa negra e consumidora, como uma dor tão leve e tão passageira que durasse minha vida inteira, pois, afinal, minhas memórias frágeis e voláteis me diziam que nunca teve um "antes" antes de você. Eu jurei solenemente pela minha própria fé de dias melhores, pela minha própria fé na minha capacidade de seguir adiante, mas o quão complicado é continuar andando quando uma parte sua caminha através de fragilidades, coisas frágeis, como seu coração, como meu coração? Só mais um juramento, uma promessa, não comprido. Vestígios de uma honestidade simples e falha. E por mais que pareça um sofrimento de amor, eu já não posso dizer que é amor. Talvez seja apenas medo de seguir em frente sem você, acabar com todos os planos que havíamos feito pro futuro e aguentar mais um tanto de tempo aqui, na minha própria cabeça, na minha solidão de pensamentos passageiros e enferrujados. Aquele gosto de amargo que me acompanha toda a vez que respiro. Isso talvez não seja amor. Isso talvez não seja paixão. Talvez nem seja solidão, tristeza ou arrependimento. Talvez seja apenas medo de viver sem você.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Almaços


Ele havia entrado na padaria para comprar um maço de cigarros, mesmo sabendo que ela não vendia e que nem tinha dinheiro para comprá-lo.
 - Por favor - disse ele para a vendedora do balcão, - um maço de cigarros.
 - Senhor, não vendemos cigarros - respondeu a mulher atrás do balcão.
 - Mesmo assim, eu gostaria de comprar um maço de cigarros.
 - Isso é uma padaria, não vendemos cigarros.
 - Vendem sim que eu sei. Vamos, por quanto você me venderia?
 - Senhor - suspirou a mulher, - não temos cigarros aqui. Compreende?
 - Não?
 - De maneira alguma.
 - Que absurdo! Todos os lugares deveriam ter cigarros.
 - E por que você diz isso?
Ele olhou para trás, em direção a rua, colocou as duas mãos no bolso e tirou um papel amassado de um deles.
 - Por favor - disse ele. - Leia o que está escrito nesse papel.
A mulher pegou o papel, com receio, desamassou-o o suficiente para conseguir entender o que estava escrito e portou-se a dizer em voz alta:
 - “Aqui, na rua, eu vi uma delicada mulher, linda como o brilho de uma lua cheia, andar. Eu, estonteado pela beleza singular e rara dela, a persegui como um sonho de verão. Ela nunca olhou para mim, mas eu sempre tive a oportunidade de vê-la, de ver aqueles olhos de cor azul como o céu e com tantos pecados quanto possíveis. A persegui por 26 dias, contando os domingos, até o dia que me atrevi a lhe falar. Ela possuía uma voz de seda, delicada e suave, pronta para esmagar meu coração com veludo. Ela retirou um cigarro de sua bolsa, o acendeu vagarosamente e me ofereceu um. Aceitei sem pensar duas vezes, embora eu não fumasse. Ela me disse que todos deveriam fumar. Perguntei para ela, por que, e só o que eu vi foram os dois olhos dela virando para mim, com um ar angelical, e o som de uma risada leve, de outro mundo. Ela respondeu com a seguintes palavras: “Quando o amor não serve de vício, porque mata e esmaga, o cigarro é um excelente apaziguador de corações”. Perguntei-lhe, “por que então não a bebida?”, e ela me respondeu “bebida? Ela vícia, e mata, e te faz perder o sentidos.” - a mulher deu uma pausa, olhou para ele, que fez sinal para continuar - E ela continuou: “deveria haver cigarros em todos os lugares”. Novamente, lhe perguntei “por quê?”. Sua resposta, que nunca esquecerei: “Quando a vida dá uma trégua, é hora de fumar. É hora de matar a dor, de esquecer a dor. O mundo precisa de cigarros. O mundo precisa de amor.”
 - Ótima leitura - disse ele. - Pode parar aí mesmo. Deixe-me te perguntar, você fuma?
 A mulher, esbabacada pelo o que havia lido, demorou a responder.
 - Sim. 
 - Você ama?
 - Sim.
 - Com que frequência?
 - Como assim?
 - Quando você se toca que está amando?
 - Eu.. não sei.
 - Entendo. Então, você tem cigarros, não é?
 - Tenho?
 - Poderia me dar um?
 - Claro.
A mulher se afastou, pegou um cigarro e deu-o para ele.
 - Muito obrigado.
 - Sabe, você poderia ter ido na loja do lado, lá eles vendem maços de cigarro.
 - Eu sei. É que eu não tinha dinheiro e precisava amar um pouco.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Correndo, nos a(es)quecemos do inverno


Nos perguntamos para onde vamos essa noite. Eu brinco, segurando uma garrafa de cerveja, dizendo que deveríamos fugir. Você ri com aquele sorriso estático, eletrostático. Fantástico. As pequenas bolotas da tua touca batem ao redor do seu rosto e eu sorrio, como quase nunca faço longe de você. Você se senta no encosto do sofá e tira um pedaço de cabelo do teu rosto. Olhamos um pro outro numa necessidade de algo mais efervescente do que cigarros e bebidas. Algo mais quente do que casacos. Aquele amor está congelado e não sai mais de debaixo da mesa. Podemos realmente fugir, eu digo para ela, já mantendo um perfil mais sério. Ela estava olhando pro chão com um meio sorriso no rosto. Podemos, não é mesmo?, ela me pergunta e eu só confirmo. Ambos olham pro chão de repente. Eu seguro firmemente a garrafa de cerveja com as duas mãos e olho para ela. Ela para mim. E de repente, sabemos. Vamos sair de debaixo da mesa. Esquecemos de ligar para qualquer um, de propósito. Fechamos as janelas, as portas, desligamos o som e todas as luzes. Saímos e trancamos todas as portas. Jogamos as chaves fora e saímos correndo como loucos no meio do inverno e de uma tempestade de neve. Paramos na estação de trem e pedimos qualquer passagem para qualquer trem. Não precisamos realmente voltar dessa vez. Nem precisamos saber para onde vamos. Nos sentimos vivos. Saímos de debaixo da mesa. Corremos e entramos no vagão para derreter aquele sentimento estagnado que uma vez chamamos de amor.

sábado, 13 de abril de 2013

Nós deixados para trás


Você é, ou era, alguém que eu procurava
sempre meio distante, sentada no parapeito da janela
olhando para o horizonte, para o encaminhar solitário
atraída pelas ondas do amar e pelo som dos corações batendo
aqueles olhos grandes e lotados de desamores
aquele sorriso em gengivas que sempre me arrepiava de prazer
eu te procurei a vida inteira sem saber como era ou foi
e tudo que nos resta, correndo, se foi, partindo como o vento
junto contigo, comigo e com a procura que ficou pela metade
parada ali no encosto do sofá, onde brincávamos de nos amar

sábado, 30 de março de 2013

Rapsódia em gotas de chuva


Eu não sei como começar esse texto. Não sei sobre o que eu quero falar nele, somente sei que eu quero escrevê-lo. É igual quando você ama alguém ser saber o exato porquê, mas você ama e quer continuar amando. E talvez seja esse o motivo de eu estar escrevendo esse texto, de estar digitando essas palavras perto da meia noite de uma quinta vomitada em vulgares trajes de quinta. É bem capaz de eu ter perdido a relação que faço com as palavras nessa grandeza gigantesca que eu chamo de vida, ou, então, eu tenha perdido a vontade de relacionar as pequenas coisas para criar as coisas grandiosas, fantásticas, absurdas. 

Eu quero criar as coisas grandiosas. Eu quero absurdos tão imensos em minha vida que eu os negue com a cabeça e os aceite com o coração naqueles momentos sem tempo, sem término, naqueles momentos em que somos tão infinitos e tão maiores do que todos os outros infinitos. Eu escrevo esse texto para realizar isso e espero que, de alguma maneira, eu consiga isso, porque me dói escrever essas coisas. Verdades doem e aceitar o fato de que você já não é o mesmo é o que mais machuca.

Mas o que mais machuca de fato? Não conseguir escrever da mesma maneira loquente, amar alguém que você sabe que não te ama e que já te deixa aos mil pedaços de interrogações sobre seus sentimentos ou não saber qual é o próximo passo que vai dar? Apesar de sempre escolhermos um culpado severo para todos nossos problemas, devo dizer que um problema nunca vem sozinho: eles chegam em conjunto, aterrissam na sua alma violentamente, sem pensar, sem avisar, sem sequer piscar. Depois vem os estragos, os corações quebrados, as mentes dilaceradas, as almas refugiadas na escuridão e aqueles sons melosos que ficam repetindo o quanto você está sofrendo em códigos simples agora que você entende o sofrimento incansável que é existir.

Você rola e chora, mas nunca por fora; é muito digna de si mesma. É sempre por dentro que acontece essas coisas, onde teu ódio é tão confiscado quanto o amor que uma vez você sentiu e que uma vez você quis doar. Você virou um campo de sonhos obliterados e suas angústias reinam sobre você com ferocidade, com força, com impacto. Torna-se amarga, chata, calada. Ri apenas por rir. Vive a vida no automático, como um animal. Pensa, mas pensar dói, então por que não deixar pra depois? Sente, mas sentir é complicado e você tem que pensar, e pensar dói, então por que não deixar pra muito depois? Aquele depois que sempre estão ali, que chegam, vão e nunca serviram de coisa alguma.

A vida vai tomando forma lá fora, se tornando cheia de vazios completados com bebidas aos montes, lanchonetes lotadas de olhares sequestradores de curvas, promiscuidade sendo dada, nunca vendida ou alugada, e pessoas como você e eu sentadas na chuva, vazias de esperanças e lotadas de guerras internas que nos fazem enxergar tudo isso e nos questionar o porquê de estarmos vivendo nessa porcaria que chamam tanto de sociedade. Essa sociedade que não presta, que precisa postar a felicidade na internet para ver quantas pessoas gostaram da sua felicidade, para, assim, caracterizá-la como jubilo. Essa sociedade completamente fútil e efêmera que emerge no próprio caos do dia-a-dia, das víboras moradoras de esquinas que esperam você sutilmente passar para te esmagarem e te deixarem chorando na calçada com o falso julgamento de que as coisas estão indo bem. Elas nunca poderiam ter sido piores.

Aquele babaca acabou de entrar naquela lanchonete e encontrado os amigos e a namorada, aquela gostosa de grandes tetas e bunda firme e bem definida. Eles estão bêbados, vão ter que pegar um táxi para voltar pra casa mais tarde. O celular dele vibra e ele sabe que é aquela menina morena que ele vem dando em cima há uns dias. Pensa em pegá-la... mas hoje não. Ele está com a namorada e traição não é algo bem visto, apesar dele já a ter traído e de que o Flávio, aquele sentado mais pro canto, perto da parede, faça isso quase toda a semana, traindo a namorada, sem ela saber, apenas algumas dezenas de vezes. Todas eram meninas de bar, uma ficada de uma noite, sem telefonemas ou telefones reais, sem nomes verdadeiros. E agora aquele babaca pensa em realmente traçar a morena do celular. Dane-se sua namorada, ela é gostosa, mas é a mesma. Está cansando da mesma. Quer diversificar o menu. Quer comer outras coisas. É, dane-se a gostosa da namorada. Responde a mensagem e arma uma para pegar a menina daqui a dois dias, quando a gostosa da namorada voltar pra faculdade. Armação completa. Ele ama a pegação.

Aquela garota sabia que todos olhavam para ela por causa do corpo. Ela nunca havia sido burra. Foi para a lanchonete com seu namorado mesmo sabendo que ele a estava traindo com várias e que poderia estar com qualquer outro cara. Ela podia: ela tinha um corpo de deixar as meninas totalmente lésbicas. Só que ela o amava. Amava aquele babaca sentado a sua frente. Amava-o suficientemente para não entender nem o motivo de tal sentimento. Então ela senta, espera as horas passarem, não bebe muito porque pode dizer coisas que ela não queira, mesmo se sentindo atraída pela proposta irresistível de tirar aquele peso todo de suas costas. Ah, ela o ama, ama aquela canalha como ele ama suas putas em sexta a noite. Seus sonhos são estranhos. Isso quando sonha, porque quase não consegue dormir direito. A faculdade acaba com sua sanidade e o namorado com seu coração. Vida, ela se pergunta. Que vida?

As latas de lixo estão mais cheias de coisas boas do que essas pessoas. Elas choram pelos cantos, rolando nas esquinas, mas são dignas demais para fazerem isso na frente de todo mundo. Isso, se, é lógico, soubessem que estão sentido algo e que estão sendo completamente manipuladas a serem o que são. Senhoras e senhores, este é aquele palco menosprezado do sentimentalismo agudo. Nova escola literária: inexistente, porque ninguém escreve corretamente. Na verdade, quem lê hoje em dia? Filmes? Só dublados e não esqueça da pipoca com manteiga. Sem obrigados nos finais de frase, porque educação já não existe. Vivendo por viver, sem ao menos saber o que o verbo viver quer dizer. Amar? O que é amor? Rima com dor. Com cor. Sabor. Calor. Odor. Rancor. Fedor. Amor. Amor? Amor! Amor...

Dentro de alguns instantes, vão me achar em um banco no meio da praça enquanto cai o maior dilúvio que já viram na vida. Ficarei pensando em todos os meus relacionamentos e como eles me afetaram. Pensarei no que eu me tornei e por quais motivos. Imaginarei os sorrisos com gengivas e expressivos daquela que eu amo, ou que já amei, porque já não sei o que sinto por você. Se tivesse uma máquina do tempo, voltaria e te mataria da minha vida, porque já não sei viver vem ti e não quero me ferir. Não quero te contar, porque é capaz de eu te amar de um jeito e você me amar de outro. Sem paixão. Sem atrito. Sem esperanças. Só aquela chuva torrencial que arranca telhados nos molhando pra fora do teatro numa sexta de primavera. Só esta chuva nova que me molha até eu conseguir filtrar todas as mágoas. Eu danço na chuva. Grito, por dentro, todos os nomes de quem eu quero esquecer ou parar de amar. Rezo, mesmo não sendo religioso, para que demos certo, seja lá de que maneira for. Eu penso, na mesma linha, nas coisas que deixei de fazer e em como a chuva está pesada. Penso que poderia estar com alguém lá dançando. Eu amaria dançar com alguém na chuva, e, quando eu dançar, eu irei amá-la, a chuva, e a garota, da mesma maneira que nenhum artista conseguirá explicar o amor: eternamente.

Por que estou escrevendo esse texto? Não sei continuar, prosseguir, exaltar. Meu amor - que saco de palavra chata essa, que teima a repetir a todo instante - apodreceu quase sem curas. Meus dedos, pelo menos, não chegaram a cair e me dão alguma joia da qual me orgulhar. Se as lixeiras estão cheias das coisas que faltam as pessoas, eu sou uma lixeira e este texto é um lixo por natureza e espero que seja descartado, deletado, não-entendido. Tudo sinônimo da mesma praça onde as pessoas esperam dar meia noite para se pegarem loucamente. Pegam, pegam, e pegam algo mais indecente que vai te levar pro hospital. Nesse texto vazio de esperanças, loucamente cego, loucamente acabado, ditam as levezas e manchas da minha alma. Quero lavá-los com chuva, mas ela não cai. E não tem ninguém pra dançar nela. 

Se meus dedos um dia encostarem em seus cabelos, atente para o pedido. Não me deixe para dançar apenas com a morte. Dancemos, amemos, escrevemos, olhemos e cantemos. Que os lixos fiquem onde estão: em suas calçadas, ambulantes com seus celulares de ponta, seus perfis carregados de gente que nem conhecem, números em suas agendas que nunca vão reconhecer e verbos que nunca vão entender. 

E no meio dessas ignorâncias básicas que são transmitidas em palavras, eu não possuía a menor ideia de como terminar esse texto. Deveria ser algo tão abrupto, mas tão incoerente que, você, ficaria

domingo, 10 de março de 2013

Procurada


Procura-se um amor que goste de deitar e admirar as estrelas
Que goste de olhar para a lua
Que ame as noites como se elas fossem infinitas

Procura-se um amor que não se esconda atrás do sol
Que se deixa iluminar
Como uma estrela em meu coração

Procura-se um amor que goste de livros
Que se apaixone por cada personagem descrito
Que use óculos e ande de pijama pela casa

Procura-se um amor que ouça música no último volume
Que berre junto com as músicas
Que cante com todos os sentimentos que tem

Procura-se um amor que não fume
Que não beba
Se ela não quiser

Procura-se um amor para fugir dessa cidade vazia
Que jogue nossas chaves fora
Que corra comigo pela trilha de trem

Procura-se um amor que ame flores
Que ande sempre a procura de uma colorida
Que vai sempre colocar uma no vaso da cômoda

Procura-se um amor doce como brigadeiro
Que seja um pouco amargo
Que seja da maneira que quiser

Procura-se um amor que sonhe
Que vai atrás do amanhecer
Que vai atrás do que quer

Procura-se um amor que também me procure
Que também está sozinho
Que também está aqui

Procuro um amor como você em qualquer lugar que eu vá.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Ok


Ok seria, tecnicamente, a resposta para todas as perguntas e não-perguntas.
"Você se sente bem?"
Eu digo: estou ok.
"Você tá legal?"
Estou ok.
"Seus dias, como vão?"
Ok.
"Seus pais?"
Ok.
"Suas leituras?"
Ok, de novo.
"Tudo ok?"
Yep. Tudo ok.
"..."

Os dias realmente parecem ok. Não há agressões metódicas. Nem sentimentais.
Não há pores do sol. Ou lua cheia.
Não há luz inteira. Nem sombras por completo.
Seguir a metáfora é mais simples. Todo mundo entende a agressão que a luz comete a sombra que ela mesma cria.
Mas não é como se tudo estivesse ruim.
Mas elas também não estão ótimas. Ou boas.
Estão ok.

É ok se sentir desse jeito, eu respondo para mim mesmo depois de um outro dia que tento sair da rotina e ela me encontra de novo e joga contra a parede.
"Você está sendo um garoto malcriado", ela me diz, "muito malcriado."
É da minha índole.
"Está ok, baby. Agora, que tal a gente continuar aqui até umas 4h? Prometo que faço aquela coisa legal."
Que coisa legal?
"Você sabe: não sair de perto de você."
Ah.
"Ah"

Não é que acordar às duas da tarde e ir dormir às quatro da manhã fosse algo ruim. É ok.
É costume. É rotina. E ela não larga do meu pé.
Não que eu também queira. É como eu disse.
"Está tudo ok, baby. Está tudo ok."
E ela continua porque realmente sabe que está tudo ok.
E eu aceito tudo isso.
Sento na cadeira do computador e fico lendo meus quadrinhos até nem perceber que horas são.
Quando olho, minha baby me chama pra cama. Ela é realmente desejável.
Ela sabe me manter por perto.

De repente eu penso que seria mais legal eu parar com essas coisas.
"Mas elas estão ok", ela me diz, como se tivesse lido meus pensamentos.
Acho que ela realmente leia.
"Lógico que eu leio. Está tudo ok."
Ok.

Se os dias tivessem alguma cor, eu diria que são sépias. Não o bom sépia, que me lembra de canela e de garotas que eu amei. Ou amo.
Nem aquele sépia mal.
Aquele sépia ok. Com cheiro meio amargo e gosto igual ao odor.
"Pode experimentar, querido. São todos seus."
Os dias são todos meus? Isso é meio triste.
"Não é. É ok."

Aquela memória vazia volta de vez em quando. Aquela que fica dizendo que eu amo alguém.
Ou eu não a amo?
"Ela é ok."
É. Ela é ok.
Sempre ok, nunca mais que ok.
"Sim, querido. Você aprende rápido as coisas. Você é inteligente."
Você está elevando meu ego, sabia?
"Eu sei."
Eu disse que ela era irresistível.

Como com apesares.
Estou com fome?
"Ok"
Estou com sede?
"Ok"
Estou gostando do que estou comendo?
"É ok."
Ok.
Estou vivo?
"..."
Estou vivo?
"..."
Acho que isso também deva ser ok, não é?
"..."

"..."
Ok.
Nosso relacionamento já não é mais o mesmo.
Mas acho que isso é ok.
Ok?
Ok.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Sorte


Dançávamos a dança do amor. Você de um lado, com um sorriso no rosto olhando para um rapaz mais velho. Eu, do outro, olhando para uma garota loira, uns meses mais nova. A dança não era clássica, mas era uma valsa; dançávamos com alguém sem par, a qualquer dia, a qualquer lugar. Às vezes não queriam dançar com a gente; tudo bem, ser rejeitado é algo natural. E eu ainda não reparava no jeito alegre que você dançava com aquele rapaz ou no jeito que ele te olhava com olhos famintos, não carnalmente, mas no tudo de você. Quando deu uma batida do sino, vocês se soltaram e se afastaram. Teu olhar ficou perdido no dele quando te tirei pra dançar aquela dança curta. 

E depois que nos soltamos, dentro daquela noite de maio azeda, eu quase não pude mais dançar com ninguém. Tentei dançar todos os tipos de dança: aquelas rápidas e sensuais; aquelas lentas, gigantescas; aquelas passageiras de tão efêmeras. E quando eu tive outro relance de você, me contive para te chamar a dançar de novo. Diante de toda a desolação, saberia que nunca mais iriamos formar um par na pista. Com a porta fechada, eu pude olhar melhor para os rostos sentidos, alguns até exaustos. 

Naquela pista de dança havia mais gente solitária, sentada nas cadeiras ao redor, do que eu havia imaginado a princípio. Eu segui até uma delas e perguntei se queria dançar. Ela me olhou com uma expressão vaga de lembrança, como se me conhecesse. E eu sabia que eu já a conhecia. Ela pensou por uns segundos e depois disse:

 - Claro. Por que não?

Começamos a dançar sem nos sentirmos exaustos. Aquela valsa lenta se tornou rápida e se alterou aos poucos em algo muito mais elaborado. Sabíamos os passos apesar de nunca ter encontrado-os. Sabíamos que a dança era imortal, como nossos olhos refletidos nos olhos do outro e isso nos bastou para saber que tínhamos a sorte ao nosso lado, nem que fosse por apenas um momento, por um reflexo suave de nossa felicidade.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Resenha: Coraline - Neil Gaiman

"Desde que quatro crianças descobriram a terra encantada de Nárnia, ninguém iniciava uma viagem fantástica num simples abrir de porta. E desde que Alice seguiu o coelho, ninguém enfrentou coisas tão extravagantes e assustadoras. Você não tem que ser criança para se render ao encanto de Gaiman em Coraline. Entre por essa porta e acredite no amor, na magia, e no poder do bem sobre o mal"

"Senhoras e senhores, meninos e meninas, levantem-se para aplaudir: Coraline é o que há". Philip Pullman, autor da série Fronteiras do Universo

"Este livro conta uma história fascinante e perturbadora que quase me matou de susto. A menos que você queira se esconder debaixo de sua cama, com o dedo na boca, tremendo de medo e fazendo toda a espécie de sons estranhos, sugiro que largue o livro devagarinho e vá procurar uma diversão mais leve, algo assim como um crime sem solução, por desvendar". Lemony Snicket, autor da série Desventuras em Série.


Coraline é uma das aquelas histórias que todo mundo já ouviu falar sobre ou porque fizeram um filme adaptado ou porque conhece o autor de algum outro trabalho e fuçando sobre a vida dele descobriu esse livro. Não que nada disso fosse necessário: Coraline é apenas um dos livros mais reconhecidos do grande Neil Gaiman, um dos responsáveis pela grande guinada dos quadrinhos na década de 80, escrevendo Sandman e a Orquídea Negra pela DC Comics (aquela do Batman, sabe?)

Apesar de Neil ser mais conhecido por seus trabalhos mais adultos, como o próprio Sandman e outras histórias, como Lugar Nenhum e Deuses Americanos, ele tem uma grande leva de história infantis, na qual Coraline talvez seja a mais importante delas juntamente com O Livro do Cemitério (nome estranho para um livro infantil, eu sei).

A história nos traz Coraline Jones, uma garota que acabou de se mudar com sua família para uma espécie de mansão dividida: várias pessoas vivem nela como se fossem apartamentos. Lá não há muito o que se fazer, então ela explora os arredores e começa a conhecer os vizinhos. Num dia de chuva, sua mãe e seu pai não a deixar sair de casa para poder explorar, então seu pai lhe dá uma folha e uma caneta e diz para contar as janelas, portas e coisas azuis. Ela conta e descobre uma porta que está trancada, uma porta que não funcionava, que não abria e muito menos fechava. Sua curiosidade aflora e ela pergunta a sua mãe para onde a porta levava. Sua mãe disse que a lugar nenhum e decidiu pegar a chave e mostrar para ela. A porta dava numa parede de tijolos. A mãe voltou a trancar a porta e guardou a chave. À noite daquele mesmo dia, Coraline começa a ouvir ruídos que a levam para a sala de visitas, onde essa porta está localizada. Ela percebe que não estava realmente fechada: estava entreaberta, mas levando, ainda, à uma parede de tijolos.

Depois de dias de tédio, Coraline aproveita que seu pai não está em casa e sua mãe tinha acabado de sair para ir ao supermercado para pegar a chave daquela porta e tentar ver, de novo, aonde ela levava. Após um pequeno sacrifício para conseguir a chave, ela se dirigiu a sala de visitas e tentou abrir de novo a porta. Ela não levava mais à uma parede de tijolos. Agora existia um corredor. Ela segue em frente pelo corredor até chegar do outro lado, onde também há uma porta. É atrás dela que a história realmente começa, porque é lá que Coraline encontra sua outra-mãe e seu outro-pai. É lá que ela descobre que gatos podem falar. E é lá que sua aventura para salvar seus pais e três crianças começa.

O livro em si é muito bom. Neil Gaiman tem grandes sacadas em algumas frases, principalmente nas falas do gato. O que me atazanou um pouco na leitura foi achar que algumas coisas se desenrolam muito rapidamente no começo do livro, deixando aquele clima de "está faltando alguma coisa aqui, mas não sei o que exatamente". Mas isso é somente no começo. Do capítulo 5 em diante a história caminha tranquilamente e de forma bastante divertida e um tanto quanto sombria. Talvez por ter lido com uma idade mais avançada, Coraline não tenha me atingido com tudo que tem, mas não deixa de ter aquele tom sombrio que faz você se perguntar o que tem atrás das portas de sua casa. Os desenhos de Dave McKean (um grande artista que já participou de inúmeros projetos com Gaiman) ajudam a construir esse cenário e até gostaria que existissem mais deles pelo livro. Apesar de ter achado ótimo, sinto que alguma coisa falta no começo, ou que poderia ser maior o livro. Deve ser somente minha vontade por livros maiores gritando, já que Neil e Dave fizeram um ótimo trabalho.

Ficha
Nome: Coraline (do original, Coraline)
Autor: Neil Gaiman
Ilustrações: Dave McKean
Número de páginas: 155
Editora: Rocco Jovens Leitores
Formato: brochura ou ebook
Tamanho: 14 x 21 (o conhecido tamanho de Harry Potter)
Ponto positivo: portas! Adoro portas. Nunca se sabe exatamente o que há atrás delas.
Ponto negativo: o que eu já havia dito, que é a questão de sentir que está faltando algo na história, só que não saber bem o que.

Links

Nota: 8,5/10


Coraline Jones em sua versão animada em stop-motion. 

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Mais de quinhentos dias sem estação


Estava andando pelos corredores desertos daquela cidade em frangalhos; um traço acinzentado dos caminhos que um dia já havia andado com amigos e amantes. As placas estavam todas apagadas dessa vez, mas eu sempre soubera o que elas me diziam. Olhava em cada esquina a procura de uma cara conhecida, alguém para conversar. Só encontrava frio e vazio. Parava em frente às lojas e via meu reflexo borrado na vitrine corroída pela maré dos anos. A barba por fazer e o cabelo desgrenhado. Os olhos castanhos perderam a cor; ficaram quase verdes de tão destonados. Me surpreendia a cada novo espelho e a cada nova esquina, ficando mais velho, mais cansado, mais triste e mais perdido. A luz do sol entrava por entre as nuvens e chocava com o cinza daquela cidade, daquele labirinto de lembranças. Ficava cada vez mais frio a cada passo, as placas ficavam cada vez mais apagadas e os vidros começavam a trincar. Folhas sépias caiam inertes pelas calçadas e ruas. Neve caindo de leve pelos lados. Aquela caminhada embriagante pelos caminhos de uma mente delirante. É. Eu sempre soube o que as placas diziam e que as vitrines apenas mentiam. São apenas reflexos, essa cidade em fragalhos imersa na névoa das horas passadas. As pessoas que vejo não possuem rosto. Os carros estão parados. Talvez embaixo da cidade haja vida. Eu comecei a ouvir sons estranhos, como uma trilha sonora dos meus passos: eram apenas as folhas mortas sendo levadas pelo vento. E na sombra de um vento frio daquela manhã fria naquela cidade em frangalhos, fria como a lâmina de uma faca, eu sempre soube o que as placas diziam. Não havia por que andar pelas ruas cheias de fantasmas do passado se todas as placas diziam "seu lugar não é aqui". Devo crer que nunca foi mesmo. Só venho aqui para me embriagar de incertezas e de almas em pó. Aquele café já havia fechado anos antes de eu o reencontrá-lo, aberto, nesse lugarejo no fim do mundo. Nunca álcool. Apenas um café, daqueles amargos. Andar por essas ruas sempre foi amargo. Você pode sentir o gosto no momento que toca seus pés aqui. Acabei passando pelo mesmo café, uma das poucas coisas abertas. O piano tocando aquela música triste, de arranhar não só discos, mas corações. Quase entrei, mas me segurei. Olhei os rostos de centenas de pessoas, aquelas mesmas pessoas tristes, sem amor, sem amizade, todas bebendo o mesmo café frio e amargo que era servido. Dei as costas ao local. Pedi gentilmente para meus pés aguentarem a viagem até a estação de trem. E quando cheguei lá, talvez por um milagre mais do que por força de vontade, vi um vagão único, sem ninguém mais por perto. Do outro lado, vi um trem completo, cheio de pessoas já colocando os casacos e vendo o mapa da cidade, se perguntando onde era o local mais desanimador que poderiam estar agora. Aquela era uma cidade passageira. Entrei no trem e sentei numa janela embaçada qualquer. Aquela cidade todos nós já conhecemos. Era uma cidade de frangalhos, de prédios em ruínas, mas que nunca caiam. O trem fechou as portas e só havia eu lá dentro. O trem seguiu em frente. Aquela cidade acinzentada foi ficando pra trás aos poucos. O frio foi passando e comecei a tirar o casaco. As placas tinham razão. Meu lugar não era lá. Era qualquer lugar, menos aquela cidade de fracassos, tristezas e músicas amargas. Cafés amargos. Nunca soube para onde o trem ia, mas essa é a intenção do motorista: não contar ao passageiro para onde está sendo levado. A cidade em frangalhos, como sua própria existência, ficou na memória, num quartinho no meio do sótão, onde eu poderia entrar e sair sem luvas e a qualquer instante. O trem, que corria em alta velocidade, só tinha uma placa, que só ficou nítida quando ele parou numa estação desconhecida.

Ela dizia: "bem-vindo".